No início eu não entendi A Amiga Genial
Para gostar de personagens femininas complexas precisei antes aceitar partes desconfortáveis de mim.
Não gostar da Elena Ferrante no Substack é como não gostar da Taylor Swift em outros lugares da internet: quem falar abertamente tá pedindo pra levar. Mas eu não vou falar que não gosto da Elena Ferrante, nem abertamente nem escondido, simplesmente porque não é verdade. Eu gosto muito. A verdade, porém, é que não bateu de primeira.
Sabe aquele meme “quem não gostou de tal série assiste de novo porque assistiu errado”? Quando peguei A Amiga Genial pela primeira vez, em 2017, eu li errado.
Eram outros tempos. Tempos de uma euforia neo-feminista quase juvenil, deslumbrada, mesmo eu não sendo mais tão jovem nem tão impressionável. Eram tempos pré-Fleabag e pré-Shiv Roy. Coletivamente, havíamos recém entrado naquela era da ficção em que tudo precisava conter uma mensagem de inclusão extremamente literal, e eu via isso como uma evolução da sociedade. Portanto as mulheres, reais ou imaginárias, só podiam ser cristais sem defeitos que colocavam a sororidade com outras manas em primeiro lugar e não perdiam oportunidade de lacrar na cara do macho escroto. Miga sua loka, pisa menos. No dia a dia, trabalhando com conteúdo pra internet, eu me mantinha com a cara enfiada numa poça rasa de conceitos compartilháveis, bem-intencionados mas superficiais.
Então quando abri A Amiga Genial esperei encontrar algo alinhado com tais convicções, uma história sobre mulheres que “levantam outras mulheres” de forma óbvia, libertando-se de suas opressões e dando satisfação à leitora. Uma história que, em suma, não faria sentido algum na Itália do imediato pós-guerra, nem nas décadas seguintes. Uma história que talvez só fizesse sentido para a Netflix dos anos 2010.
Naquele momento histórico e internético, a radical noção de que mulheres são gente nos era proposta evitando uma realidade desconfortável: a de que ser gente implica ser falha. O fato de não considerar automaticamente as outras mulheres como rivais e inimigas não é o mesmo que ser obrigada a gostar de todas elas. E as razões para desgostar de outra mulher nem sempre serão nobres. Há situações na vida, seja amorosa ou profissional ou familiar, em que seremos sim rivais e inimigas, e vamos sentir inveja e ciúmes e raiva. Era só o que nos faltava, além de toda a carga que já implica ser mulher, precisarmos ser seres de luz o tempo todo.
Não é sempre bonito ser mulher, não é sempre bonito ser gente e, na vida real, a amizade de longo prazo é um bem tão precioso e ambíguo como água: sujeito a ondas, marés e profundezas onde a luz não chega.
Eu não queria olhar para isso e não sabia o que fazer com A Amiga Genial. “Não quero ler sobre como é horrível ser mulher, e sobre como não há redenção” pensei em 2017. O livro me incomodava, não entendia por que Lila e Lenù seguiam amigas se tinham sentimentos tão contraditórios uma pela outra, se o afeto entre elas estava longe de ser puro e sem manchas.
Muitas coisas aconteceram comigo e com o mundo até o dia em que assisti, com bastante atraso, à primeira temporada da série da HBO. E aquelas palavras, aquelas personagens, desta vez entraram pelos meus poros de uma forma que não poderia ter acontecido sete anos antes. Apesar da comparação com Fleabag e Succession, considero Lila e Lenù muito mais verdadeiras e multifacetadas do que as personagens que citei. Suas mesquinharias e incoerências não foram escritas para gerar entretenimento, não há ironia nelas. Suas falhas doem tanto nelas como na leitora, e agora estou disposta a deixar que doam, para viver real e completamente a experiência Ferranter.
Antes tarde do que nunca, decidi não ver a segunda temporada e, em vez disso, terminar a tetralogia. Não vejo a hora de odiar o Nino Sarratore.
(Un fato curioso sobre mim é que nasci na Itália e mudei pra Porto Alegre na pré-adolescência, fiz segundo grau e faculdade no BR. Depois voltei pra lá, onde morei mais vários anos. Eu tenho uma relação de amor e ódio com meu país de origem, extremamente conservador e machista até hoje, e também precisei fazer as pazes com isso antes de deixar Elena Ferrante me conquistar. Leio ela em italiano.)
Eu também comecei a ler Ferrante e não bateu. Passei boa parte do primeiro livro pensando: mas por que raios recomendam tanto essa história chatíssima sobre nada?
Foi só mais pra frente que a leitura engatou e eu mergulhei no universo da Ferrante. Da série eu acabei desencanando, vi só a primeira temporada. Mas quero retomar com mais calma e o coração aberto. É que eu acho que nos livros a Ferrante deixa muita abertura à interpretação, à imaginação, e na série foi preciso escolher alguns caminhos (é claro, se não, não tinha série) e isso me deixou incomodada quando assisti com os livros ainda muito frescos na memória.
Acho que ler Ferrante me ensinou justamente isso que você fala que gerou incômodo: a ver como somos humanas, demasiado humanas e cheias de falhas. E esse é um trecho bem difícil, cheio de solavancos, da nossa jornada de auto-humanização, né?
Tenho uma suspeita que você vai gostar de All fours, da Miranda July.